Eu relutei um tantinho em escrever esse post porque sei que é um tema polêmico, que gera reações “apaixonadas”. Contudo, como ele toca em um ponto que diz respeito a todas nós, e como é um assunto que foi, em parte, tema da minha monografia, que eu conheço o suficiente pra opinar, resolvi fazer o post.
Em resumo, está tramitando um projeto de lei que é uma verdadeira aberração, que viola diretamente, dentre outras coisas, a dignidade da pessoa humana, fundamento do nosso Estado de Direito, valor máxime no sentido de balizar qualquer ingerência a outros direitos fundamentais.
O Estatuto do Nascituro pretende, dentre outras coisas, criminalizar o abortamento inclusive nos casos em que ele é permitido por lei. Sim, caso a sua vida esteja em risco, você será obrigada a manter a gestação. Sim, em casos de anencefalia, onde sequer deveria se falar em aborto, mas sim em antecipação terapêutica do parto, você será obrigada a levar a “gestação” adiante. Sim, caso você seja estuprada (Deus nos livre), será obrigada pelo Estado a ter o filho. Não só isso… O “pai” pagará pensão e, caso a mãe não possua meios de cuidar do filho, o Estado arcará com as despesas, numa espécie de, como bem disse o Casal Sem Vergonha, “bolsa estupro”.
Não, eu não sou a favor do aborto, e nenhuma mulher em sã consciência é, e isso precisa ficar claro. Mas entendo que cabe à mulher – e apenas a ela – decidir, à sociedade respeitar e ao Direito garantir.
Contudo, é fato que o Estatuto do Nascituro trata, de maneira rasa e lamentável, a problemática do aborto sob a ótica do feto, nunca da gestante. Em nenhum momento se cogita os direitos da mesma. Ou seja, a proteção ao nascituro parece ter o condão de excluir por completo a proteção aos direitos da gestante.
Quando veda o abortamento em casos de estupro, o que pretende essa lei é tão somente promover uma agressão bárbara à autonomia, dignidade, integridade física e psíquica, e a saúde da mulher.
A mulher que, porventura, decida prosseguir com a gestação, está agindo de acordo com os seus princípios e deve ser respeitada, entretanto, não se pode impor essa decisão coativamente. A obrigação de carregar no ventre o fruto de um crime é uma violência psíquica do estado contra a mulher, é constrangê-la a um sofrimento que ninguém tem o direito de impor-lhe.
Dizer-se criminosa a conduta da gestante que, na hipótese em tela, põe fim ao seu sofrimento emocional é exigir o inexigível, e um sistema jurídico que exige o inexigível carece de legitimidade.
Quando a discussão gira em torno da delimitação do âmbito de proteção jurídica à vida humana, as diferentes ideologias se digladiam para preconizar suas verdades. Entretanto, para compreender o debate sobre o aborto, é preciso partir de alguns parâmetros (jurídicos, não religiosos) a fim de evitar discussões infrutíferas, afinal, em parte, o dissenso deste caso parte de paradigmas inconciliáveis.
Assim, têm-se que os direitos reprodutivos integram os direitos humanos, e que o direito ao próprio corpo precisa ser respeitado, e, na medida em que o Estado nega proteção aos direitos reprodutivos, incluindo, em sentido amplo, o direito ao abortamento seguro, contribui para a morte de milhares de mulheres que ele deveria proteger, porque não adianta criminalizar, é preciso educar.
O grande entrave ao abortamento seguro é, infelizmente, puramente religioso, contudo, cabe salientar que o Estado brasileiro é laico, e este é um fato de suma importância, pois a partir do momento em que não se reconhecer o caráter de laicidade do Estado, perder-se-á o sentido da democracia.
É preciso ter em mente que o abortamento é questão de saúde pública, de liberdades e responsabilidades individuais, e não de moralismo e fundamentalismo religioso, não podendo o direito se converter na voz exclusiva da moral religiosa.
Os que se autodenominam defensores morais da vida, por vias tortuosas de raciocínio, partem do pressuposto básico de que a solução para essa realidade atroz encontra-se na proibição absoluta de qualquer procedimento que venha a macular a vida humana, sem atentar para o fato de que a criminalização da conduta pode sim melhorar a proteção à vida do feto no mundo dos conceitos jurídicos, mas não na realidade social. Não sabem eles que, em virtude da sua intolerância, são responsáveis, ainda que indiretamente, pelas mortes – dos fetos e das mulheres- que tanto combatem.
Não existe consenso sobre o que seja a vida, bem como suas reais dimensões. É certo, porém, que a vida, como bem jurídico máximo do sistema constitucional, há que ser preservada. Entretanto, o direito penal, devido ao seu caráter notadamente fragmentário, não outorga proteção absoluta a nenhum bem jurídico. É dizer, não existem direitos absolutos, e o direito a vida não pode ser interpretado como se absoluto fosse, vez que nenhum direito o é.
Assim, partindo da premissa de que o direito à vida não é ilimitado, deve-se analisá-lo sob uma perspectiva valorativa, dado que é inegável possuir a tutela da vida humana graus variados. É preciso que se atente para a dignidade da gestante e para todos os direitos que ela, como pessoa humana, possui, porque, afinal, qual a finalidade de se conferir a uma pessoa o direito à vida, estando ausente a dignidade, a liberdade, a autonomia, a integridade física, a integridade psíquica e a saúde? Nenhum!
Concordar com um absurdo desses é concordar com a “coisificação” da mulher, e isso é terrorismo, é o absurdo dos absurdos
Beijos
Ju